segunda-feira, 12 de maio de 2008

Instantes...



Vidas e máquinas desfilam por Juazeiro da Bahia. Numa verdadeira interação, a cidade vai ganhando identidade. Vontades e necessidades cotidianas impulsionam a construção e o funcionamento desse sistema. Todo dia é a mesma coisa. Quando não... pode ser que seja Carnaval.


A vida moderna causa uma espécie de cegueira coletiva. O tempo voa pelas nossas artérias. Mas foi durante a espera pela barquinha para ir a Petrolina-Pe (do outro lado do rio São Francisco) que um simples intervalo me encheu de significação... O tempo parecia não querer passar. A barquinha demorara mais que os outros dias. Escolhi um barranco de areia para me sentar. Pelo jeito... ia ter que esperar sentada mesmo.

Foi nesse instante que me senti estranha. Parecia desacelerando. Fui parando, respirando conscientemente, diminuindo o ritmo e observando meio mecanicamente as coisas ao meu redor e... tudo foi ocupando seu devido lugar! É engraçado como tudo sempre está lá, mas não notamos. E as coisas da natureza mesmo passando por metamorfoses constantes estão em lugares comuns muitas vezes estratégicos ao nosso olhar. Tudo se torna mais compreensível e familiar quando acionamos a nossa percepção aos detalhes do cotidiano.

O sol deixa no céu os rastros de uma explosão de cores. A noite surge aos poucos. Daqui do lado de Juazeiro... vejo Petrolina. Observo também a ponte Presidente Dutra que interliga as duas cidades deixando transparecer um intenso tráfego. Cores e movimentos, sombras e luzes tornam-se visíveis num cenário que rouba minha atenção. Modernidades e fontes primitivas se mesclam numa fração de segundo. Prédios e barquinhas... Quanta coisa se percebe na escuridão da noite. Calmaria nas águas do rio enquanto a barquinha não chega. Juazeiro e Petrolina: Trocas de energias. Unidas e separadas naturalmente pelo rio São Francisco...

Vidas e máquinas procuram seus caminhos. Idas e vindas... Vindas e idas de vidas. Só a barquinha que até agora não deu sinal de vida...

A ponte, construção humana é também uma outra opção de locomoção. Mas prefiro esperar a barquinha. Pessoas de todos os lados se aproximam do “ponto” da barca e passam também a esperar... parece que elas também preferem ir de barquinha ao invés de pegar um ônibus. Além de mais agradável e econômica é uma forma primitiva e a meu ver, uma forma romântica de se locomover. Só que às vezes demora tanto...

São várias barcas que atravessam o rio em busca de passageiros para transportá-los de uma margem à outra. Uma delícia! Mas até agora nenhuma barca aponta sua chegada. Essas pessoas devem preferir mesmo ir de barquinha... não iriam esperar tanto tempo assim tendo outras formas de transportes.

Nesse “intervalo”, muitas vidas atuam e desfilam em minha frente, seres ocultos que passam a fazer sentido num mundo anestesiado de detalhes e minuciosidades. E é nessa hora informal do esperar, que percepções entram em contato com o espetáculo da natureza. Coisas que existem, mas que passam a “ressuscitar” nesses intervalos de instantes.

As pessoas se distribuem no cenário fluvial. Gente que chega com o sapato cheio de areia, saltos de sandálias afundam na areia da beira do rio e vale até uma corridinha pra perto do ponto para “assegurar” uma vaga dentro da barca. Pessoas unidas num ato de vigília a espera da sua companheira fiel.

A demora da barquinha aproxima mais as pessoas. Enquanto ela não vem, conversas e papos são jogados ao ar... literalmente. “Estranhos” perdem as máscaras na escuridão, e são melhor visualizados.... Naqueles instantes relações humanas fazem-se mais vivas e próximas.

Mesmo assim, algumas pessoas preferem ficar sozinhas... Imersas na concentração anti-reflexiva que se interpõe à rotina moderna. Outras procuram assunto com quem se encontra próximo e logo depois de alguns minutos, as mãos chegam a fazer acrobacias no ar lembrando os gestos manuais de um maestro que rege sua orquestra ao sentir a melodia. E tem aquelas que procuram companhia. Olhares procuram olhares, às vezes se cruzam intimidando o próprio objeto focado.

Todos ali, reunidos e separados, num “faz –de- conta -que -não -te –conheço”, proibido falar e olhar... Deixando predominar a força da individualidade, se não fossem as espontaneidades de algumas pessoas que encurtam essa distância ao perguntar as horas, comentar a demora da barquinha ou do calor intenso do dia... E até o acaso contribui em algumas situações.

Numa dessas, um rapaz que esperava a barquinha em pé, depois de muito esperar, quebrou o abismo de silêncio e distância iniciando uma “conversa” amigável com um cachorro que se debruçava sobre a areia do rio.

Como naufragado em outra dimensão, o cachorrinho não tinha nem interesse, nem tempo para observar o homem que insistia em manter contato, o canino estava totalmente apático, com um olhar “reflexivo”, concentrado, distante...como se estivesse cansado de esperar por algo. Estava irredutível aos sinais de aproximação humana... deve ter se inspirado em nós mesmos.

Que interessante. Vidas dialogando com outras vidas e que muitas vezes são desprezadas por nós. Naquele momento, vários olhares concentraram-se na cena do rapaz conversando com o cachorro. Não importa se só para passar o tempo... A verdade é que essa ação se fez notável. Não é todo dia que uma pessoa inicia um diálogo com um “animal” em alto e bom tom. Realidades que se voltaram à realidade de um “simples” ser. Instantes percebidos por olhares curiosos.

Será que cada pessoa que estava presente a esperar a barquinha não se identificou com esse gesto que temos normalmente em casa? Ou que raramente temos na rua? Nesses instantes, olhares captam em atitudes exemplos e vice-versa.

Naquele instante, o individualismo humano, a distância, a seriedade e uma montanha de frieza foram desmascarados pela amistosa tentativa de diálogo entre vidas. Mostrando que dentro do seu tempo, sempre há um tempinho para perceber, prestar atenção e enxergar as coisas da vida, as outras formas de existência que compartilham a mesma experiência do estar vivo.

O rapaz insistia uma maior aproximação... Como se quisesse acariciar o cachorrinho. Porém o canino cansado do “desprezo” de todo dia, continuou fazendo “charme”, agradecendo quem sabe através dos olhinhos aquele gesto aparente de carinho... Mas não quis saber de contato. Cada um na sua! Não é essa a lei? Continuou em sua pose de esfinge egípcia, belo quase adormecido e todo majestoso deixando o rapaz a implorar através de assobios e gestos com a mão, uma interessante forma de admiração por um “outro”... Que dessa vez, não é o espelho.

E a barquinha já anuncia o seu aproximar... Todos nos devidos lugares novamente.